sábado, 25 de abril de 2020

Anthropological blues ou crônica do dia 56


São Paulo – dia 56

Corpo comprimido, levado para o interior do vagão, estacionado entre uma porta automática e outro corpo. Coração acelerado. Na linha vermelha do metrô, como na vida, não é possível voltar. A vida é fluxo e batismos de fogo. Momentos antes havia uma coreografia, e ela continua lá todos os dias. Estação Brás: uma baldeação, um olhar, uma dança, e muita beleza no caos. Corpos múltiplos de diferentes cores e tamanhos e formas, e caminhantes, e correntes, e ligeiros, cada um em cada direção a partir de um centro vazio. Não-lugar, multidão, solidão, deriva, um sorriso no meio de tudo isso...e uma informação...
- “Por favor, uma informação...muito grata...”
- “Imagina...”
“Imagina” é o “de nada” do paulista...é um dizer gentil, pois, sim, há gentileza em SP. Tem gente que vê, ouve, sente e age no meio tons cinzas e pretos dos prédios e dos sobretudos. Sotaque do “norte” é portal e espelho para um particular Anthropological blues, como diria DaMatta. Etnologia involuntária que a música da palavra dita acorda em alguém em sua tristeza e saudade e devolve ao que é meu: “...meus pais são de Pernambuco...” , “...no nordeste ninguém passa fome, sempre alguém dá comida quando alguém precisa”, “Quero visitar minha avó em Agrestina”. O Norte é metáfora que abrange o Nordeste, o paraíso perdido de tantos que vivem, dia após dia para trabalhar, para trabalhar, dia após dia, para trabalhar (quando têm trabalho)... e sentem frio.
O frio....
“O frio matou três pessoas em menos de 24 horas”, diz o noticiário. Não, não foi o frio que matou três pessoas. Aqui, do auge dos 13 graus deste momento, estou longe de morrer. O que mata quem morre de frio em SP, é o mesmo que mata em qualquer lugar do mundo. Negação da visão de si como parte da doença que não enxerga o outro. Gestores são espelhos. A cidade mais bonita dos meus caminhos, com direito a paisagem de cinema esquecido pela população local, escolheu o defensor da tortura para administrar seu país.
Seguir sem querer enxergar é ser gado...gado na coreografia de qualquer linha do complexo-terrível-maravilhoso no metrô de São Paulo, gado no viaduto, gado que corre à esquerda da escada rolante, gado que estaciona à direita da escada rolante, gado na praia da elite paulista em frente ao mar e de costas para o rio, e vice versa. Gado que pasta e rumina e faz merda (com direito a todos os trocadilhos), e faz, e faz, e fim.
São Paulo é limite que toca as Minas e o Rio. Serra da Cantareira, Mairiporã, Paraty, Itamambuca... “Não conhecemos”, disseram-me parentes do ABC paulista que vivem há quarenta, cinquenta anos na terra da garoa...
 “...oh mundo tão desigual, tudo é tão desigual...”
 Eu ali na intersecção do tempo e do espaço. Detentora na carne de vidas que vieram antes. Corpos aquém e além entre expansões e recolhimentos. Eu sinto tudo e sei o que tudo isso significa. Estou presente.
 Antes de ontem chorei no trem. Ouvi o áudio da minha irmã mais velha falando de sua morte e de seu renascimento. Quando de sua morte, morri no espaço-tempo de sua descrição de tudo. Há 15 dias eu poderia estar neste mundo sem uma das pessoas que mais amo na vida....tempo ligeiro, tempo que passa, tempo que dobra e segue...“Sheila, volta! Respira!” disse a minha voz-interna-portal-de-imunidade-e-sobrevivência...
- “Moça, já passou a estação Prefeito Celso Daniel?” (o nome de uma estação e tantos pensamentos em segundos...corpo, política...)
- “Não. Ainda faltam algumas estações”
- “Muito grata!”
- “Imagina!”

 


quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Sobre sabedoria (Jnãna) e discernimento - o caso de Mainardi e o nosso momento político

A maior parte do texto que ora exponho foi escrito em meados de 2012 e 2013, quando estava exausta escrevendo uma tese. Eu publiquei no facebook com o seguinte título: Mainardi, a dotoressa F, e o pensamento obtuso. Por algum motivo, eu o perdi. Encontrei impresso há dois dias entre meus papéis, e ao reler achei que seria um ótimo caso para analisarmos juntos o que é esse nosso momento político, tanto do ponto de vista individual, quanto coletivo, tanto do ponto de vista material, quanto ao nível sutil.
Jnãna, ou sabedoria ou conhecimento, de acordo com a “Enciclopédia de Yoga da Pensamento, de Georg Feuerstein, é uma “palavra usada no contexto secular e no sagrado. Pode-se designar erudição ou *conhecimento conceitual e também *sabedoria intuitiva superior, ou gnose. Ocasionalmente, jnãna é equiparada à própria realidade suprema” (pág. 118). Quando o Gãyatri mantrah é entoado é em função do discernimento que estão a nossa voz, os nossos pensamentos, enfim, a nossa ação – “Om. Contemplemos o esplendor do divino Sol vivificante, presente na terra, na atmosfera e no céu. Que ele ilumine nossa visão. Rig Veda, III:62,10.
A iluminação tem a ver certamente com aquilo que na filosofia ocidental se nomeou Iluminismo (afinal, a ciência tal qual a conhecemos, nos ajuda a não sucumbirmos ao senso comum), mas principalmente tem a ver com aquilo que está identificado com o nosso terceiro olho, no ponto que fica entre nossos olhos e que enxerga sem que sejam necessárias, córneas, íris, pupilas, retinas, ou qualquer coisa do tipo. Esta iluminação ao qual se refere o Gãyatri mantra, tem a ver com saber discriminar o que é superficial do que realmente importa, o que acaba em seu ciclo e o que perdura pelo infinito através de nossas escolhas.
A escolha de Mainardi é o exemplo do caminho de uma pessoa com grande incapacidade de discernimento, apesar de ser um intelectual e com relativa erudição, ou seja, sabedoria não tem a ver com grau de escolaridade ou mesmo classe social. A empregada doméstica que hoje jogou o saquinho plástico na calçada enquanto chegávamos no mesmo prédio tem a mesma incapacidade de discernimento que o motorista da BMW que abriu o vidro do seu carro para saltar fora a lata de refrigerante. Trata-se da mesma incapacidade de discernimento de um professor de Yoga que sucumbe ao ego e, sem responsabilidade, profere palestras em cursos de formação, opinando sobre Bullyng, cotas raciais, aborto, e tantos outros temas complexos, vomitando puro senso comum travestido de sabedoria adquirida ao longo de quatro anos na Índia. A fonte é a mesma. Uma incapacidade dolorosa de perceber os efeitos do pensamento e das ações (mesmo em palavras) tanto para si mesmo/a, quanto para o mundo, e é necessário falar sobre isso.
Vamos ao caso de Mainardi...
“16:00h, quinta-feira, reunião da universidade para discussão da minha pesquisa. Cansada do meu próprio objeto, cansada de um ciclo infindável, pego um livro qualquer que, em princípio não tenha nada a ver  com mulher, gravidez, parto ou qualquer coisa do tipo, e o levo comigo a fim de desopilar um pouco a mente. Estava parcialmente enganada. Li três quartos do livro “A queda” no ônibus, pois tive a sorte de ir e vir sentada. Certamente desopilei a mente, mas sim, tinha a ver com mulher, gravidez, parto e qualquer coisa do tipo. Escrita fácil e envolvente, Diogo Mainardi, conhecido por ser um polêmico reacionário, mergulha com dignidade em seu próprio drama pessoal na medida em que se assume “escritor de sua própria letra”, principalmente de suas letras tortas, abestalhadas, caintes, caídas...exemplo: “O que eu disse a Anna, contemplando a Scuola Grande di San Marco, alguns instantes antes de entrar no hospital de Veneza realizou-se plenamente: “Com essa fachada aceito até um filho disforme”. “Eu aceitei a paralisia cerebral de Tito”. Ele aceitou, mas ele não aceitou sem crítica. Aceitou, mas sem prescindir da circularidade de seus pensamentos. Aceitou, mas também errando nas correlações, e é aí onde entra a minha própria circularidade. A obtusão ou “abestalhamento” (para utilizar um termo recorrente em sua obra) provocou o que sempre me provocam assertivas obnubiladas: angústia, incredulidade e, certamente, raiva, afinal concordo com a máxima de que a ignorância de aproxima, e muito, da maldade, da má fé. 


Eis o que me comoveu:
“No hospital de Pádua, em 1739, George Macaulay formou-se como médico obstetra. Algum tempo depois, estabeleceu-se em Londres e, em 1756, no hospital de Brownlow Street, foi o pioneiro de um procedimento cirúrgico conhecido como amniotomia [...], o procedimento obstétrico introduzido por George Macaulay consistia em romper artificialmente o saco amniótico no útero das gestantes, para tentar acelerar o trabalho de parto. [...] Em 30 de setembro de 2000 [...] uma obstetra – dotoressa F – resolveu acelerar o nascimento de Tito por meio de uma amniotomia. Sem se preocupar minimamente com os aspectos éticos do procedimento, ela foi logo rompendo o saco aminiótico no útero de Anna com um instrumento conhecido como amniotomo. [...] A maniotomia realizada pela dotoressa F foi descrita pelos peritos como “totalmente imprópria, inoportuna e perigosa”. [...] Em 1486, na Alemanha, o inquisidor Heinrich Kramer , da ordem dos dominicianos, publicou o seu Malleus Maleficarum. O capítulo XIII tratava especificamente das parteiras-feiticeiras que cometiam o mais medonho de todos os crimes quando assassinavam bebês recém nascidos”. Heinrich Kramer, no Malleus Maleficarum recomendou que as parteiras feiticeiras fossem presas e torturadas pela autoridade religiosa. Nos últimos 500 anos, a prática  da tortura caiu em desuso. Apesar de todos os erros cometidos durante o nascimento de Tito, quando uma parteira-feiticeira  tentou assassiná-lo, só tive o direito de  pedir ao hospital de Veneza um ressarcimento em dinheiro”.
Sofri com Mainardi quando ele descreveu todos os erros médicos de dotoressa F. Sofri com ele  pela incapacidade de fazer o tempo voltar, sofri pelo sofrimento da mãe de Tito (que é invisibilizado do relato de Mainardi), chorei (no ônibus mesmo) quando ele disse que chorou, mas eu também sofri ao ver a confusão que Mainardi faz ao invocar, mesmo que indiretamente,  o destino prescrito no Malleus Maleficarum ou “Martelo das bruxas” às parteiras feiticeiras. Mais que isso revirei minhas vísceras ao ver a confusão de Mainardi ao realizar a esdrúxula articulação entre a “natureza” da médica dotoressa F, e a “natureza” de uma parteira-feiticeira, e é aqui que termina meu encantamento com a humanidade do livro, e com as memórias de um pai dedicado, e me debato com a humanidade em demasia que o livro invoca ao evocar também  as cem mil mulheres queimadas vivas entre o fim do século XIV e século XVIII como expõe Rose Marie Muraro na introdução do Malleus Malleficarum de 2011, da editora Rosa dos Ventos, que tenho em mãos.
A dotoressa F jamais poderia ter sido comparada a uma parteira-feiticeira pela simples razão de que mulheres tidas por feiticeiras, ou seja, as mulheres cultivadoras de ervas, parteiras, dotadas de conhecimentos populares de cuidado com a saúde, passaram a ser consideradas grande ameaça ao poder médico que ascendia no interior do sistema feudal. Além disso, como tão bem expõe Muraro, “quando cessou a caça às bruxas, no século XVIII, [...] o saber popular cai na clandestinidade, quando não é assimilado como próprio pelo poder masculino já solidificado”. Dotoressa F aplicou um conhecimento médico, mas foi responsabilizada junto com o hospital – instituição centralizadora do conhecimento técnico-científico (vejam bem, não das parteiras). Por que, então, um erro tão crasso em tal analogia? Minha suspeita é que Mainardi projetou as fogueiras da idade média em si mesmo ao se queimar nas chamas de sua ignorância assumindo abestalhadamente o erro do parto no corpo de sua esposa (corpo este invisibilizado em toda narrativa) e no corpo do seu filho, como é possível perceber no fragmento a seguir: “O hospital de Veneza era conhecido por seus erros médicos. Em vez de recorrer a um hospital mais seguro [...] limitei-me a achincalhar a possibilidade de ter um filho deforme. Eu só conseguia associar a arte perfeita de Pietro Lombardo a um parto igualmente perfeito. Porque o bem, representado pela arquitetura de Pietro Lombardo, jamais poderia gerar o mal, representado por um erro de parto”.
Depois de “exorcizar minhas bruxas” (trocadilho muito medonho) por meio desse textinho, retorno à minha circularidade, ou não”.
 Pois então, depois de três ou quatro anos retomo esse texto como pano de fundo para falar sobre (in) capacidade de discernimento ou o que é sabedoria
Mainardi preferiu uma arquitetura, a um filho saudável. Mainardi associou a médica obstetra antiética a uma feiticeira-parteira. Mainardi é a antítese da capacidade de discernimento. É a ignorância personificada e, como tal, faz-se vítima de si mesmo e vitimiza - sua esposa e seu filho foram vítimas da sua incapacidade de discernir.
O texto sobre essa (in) capacidade de discernir e o momento político atual continua...  


sábado, 28 de fevereiro de 2015

Garrafada e outras feitiçarias...

Minha mãe quis fazer uma garrafada de sete ervas em vinho para curar os sintomas de sinusite, rinite, otite, artrite, enfim, todas as minhas ites e eu adorei a ideia. Primeiro passo: comprar as ervas (ainda não tenho minha cozinha medicinal, mas terei). Fomos ao mercado de São José. Claro que não vamos fazer feitiçaria. O título foi só uma brincadeira porque, querendo ou não, nas barracas de ervas têm velas, incensos, estátuas de divindades e, sim, vodus (achei tão doido isso). De qualquer forma, eu acho interessante essa relação ervas x feitiçarias. A sábias mulheres da idade média que o digam. Pagaram com suas vidas e isso não foi nada engraçado. 
Voltando à garrafada, fomos em busca de: Eucalipto, Alecrim, Malva Rosa, Cumaru, Anjico, Canela e Sucupira (que foi substituída por casca de cajueiro roxo).



As ervas foram lavadas e ficaram no escorredor com um pano de prato limpo e seco por baixo. Esperamos elas secarem e como minha mãe não tinha tanto tempo, coloquei 1 min no forto microondas para secar. A cozinha ficou uma delícia de cheirosa...
Depois pegamos três garrafas secas e minha mãe foi colocando a mesma medida de ervinha em cada uma...vejam que coisa linda...dava para ser até um arranjo de centro...




A sucupira foi substituída por dois motivos: não cabia inteira na garrafa e foi impossível quebrá-la. Procurei no google, se tinha alguma dica, e encontrei o seguinte blog que, só para vocês terem uma ideia , a chamada era assim: Cha de Sucupira (1) - A saga - Clube da Dona Menô
Não ajudou em nada, mas me fez dar boas risadas com minha mãe, afinal, estávamos na mesma saga, só não apelamos para furadeira.

Foi realmente uma pena não ter conseguido fazer uso da semente da sucupira, pois são atribuídos a ela poder antioxidante, anti-inflamatório, anticarcinogênico, antirreumático, antidiabético, tônico e analgésico
Enfim...depois que as ervas foram colocadas nas garrafas foi colocado o vinho. Ficou uma lindeza! Ficarão alí por sete dias e só depois disso começarei a tomar um cálice por dia (na medida de licor). 
Vamos ver os resultados...


sábado, 21 de fevereiro de 2015

Sábado - dia de feirinha agroecológica

Difícil, muito difícil se acordar cedinho no sábado, mas a feirinha agroecológica vale a pena. Hoje cheguei tarde (07:00). Já era fim de feira, mas consegui comprar banana, couve-folha, manjericão, mel e claro, os pastéis de d. Lenir (foto). Encomendei queijo-coalho (agroecológico) para o próximo sábado e fiquei sem o coentro de sempre, mas ainda consegui o pimentão. Dado o adiantado da hora não tinha mais pastel de jaca, então comprei de ricota, soja (que não gosto) e repolho. Comi um na hora com o suco de limão e capim-santo servido por Sr. Jones (foto). O campim-santo também tem o nome de capim-limão e capim-cidreira e tem várias propriedades medicinais (farei um post sobre ele depois, assim como para o limão). Hoje sr. Biu Sanfoneiro, uma graça de pessoa, me prometeu uma mudinha de capim-santo para o próximo sábado. Na feirinha é outro tempo, outra vivência. 17 anos é o tempo que alegram e alimentam pessoas como eu. Eu os conheci por meio dos vídeos cujos links compartilho a seguir e é um prazer e uma honra compartilhar de suas presenças, mesmo que d. Lenir sempre me chame de Shirley, rsrsrrs....faz parte...e a gente acha graça...

Cuidando do Sítio São João - parte 1
Cuidando do Sítio São João - parte 2
Cuidando do Sítio São João - parte 3


A seguir endereços das feirinhas agroecológicas em Recife e Olinda. Demais endereços ver aqui. 
Recife
Espaço Agroecológico das Graças
Rua Souza Andrade, atrás do Colégio São Luiz.
Bairro das Graças, Recife/PE.
Todos os sábados. Das 5h às 11h.
Espaço Agroecológico de Boa Viagem
Praça Jules Rimet, por trás do 1º Jardim de Boa Viagem. Recife/PE.
Todos os sábados. Das 6h às 11h.
 Feira Agroecológica Chico MendesPraça Farias Neves, em frente ao LAFEPE.Bairro de Dois Irmãos, Recife/PE.Todas as sextas. Das 6h às 12h.
Feira de Economia Solidária e Agroecológica UFPE/CCSA 
Campus da Universidade Federal de Pernambuco, ao lado do prédio do Centro de Ciências Sociais Aplicáveis - CCSA
Todas as quartas. De 5h às 13h.

OlindaPraça do Carmo, Olinda/PE.Todos os sábados. Das 5h às 10h.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Mulheres artistas, autoconhecimento e sororidade

Frida, assim como boa parte das mulheres pensantes (Virgínia Woolf, Simone de Beauvoir, Carolina Maria de Jesus, entre tantas outras maravilhosas), pintou-se a si mesma, elaborou a história a partir de suas próprias experiências pessoais (que são também políticas) e seguiu sendo inspiração. 



Pintar-se, escrever-se, desenhar-se, cantar-se, enfim, dizer-se de tantas formas foi/tem sido o modo encontrado para fazer das vivências e experiências próprias das mulheres (vejam bem, vivências e expriências, não estou recorrendo à essência para discorrer sobre experiências femininas), lugares não só compreensíveis (porque sempre o foram), mas mais que isso, valorizados em suas particularidades (porque estas têm sido relegadas à condição de "coisas de mulher" e, portanto, diminuídas em relação às vivências masculinas e em ambas, claro, estou falando a partir de uma perspectiva hegemônica). 

Não fosse, por exemplo, Carolina Maria (mulher negra, mãe solteira de três filhos, catadora de lixo) a contar sua própria história, quem o faria, ou faria com a sua verdade? Carolina escrevia para esquecer a fome - a dela e dos filhos. Escrevia para despistar o nervosismo que leva à loucura e ao suicídio. Disse-nos ela em seu livro quarto de despejo:



“Amanheceu garoando. O sol elevando –se. Mas o seu calor não dissipa o frio. Eu fico pensando: tem época que é sol que predomina. Tem época que é a chuva. Tem época que é o vento. Agora é a vez do frio. E entre eles não deve haver rivalidades. Cada um por sua vez. Pág. 38

“...De manhã estou sempre nervosa. Com medo de não arranjar dinheiro para comprar o que comer. Mas hoje é segunda-feira e tem muito papel na rua. (...) o senhor Manuel apareceu dizendo-me que quer casar-se comigo. Mas eu não quero porque já estou na maturidade. E depois, um homem não há de gostar de uma mulher que não pode passar sem ler. E que levanta para escrever. E que deita com lápis e papel debaixo do travesseiro. Por isso é que eu prefiro viver só para meu ideal (...)” pág 50
“...Quando eu era menina o meu sonho era ser homem para defender o Brasil porque eu lia a História do Brasil e ficava sabendo que existia guerra. Só lia os nomes masculinos como defensor da pátria. Então eu dizia para minha mãe: - Porque a senhora não faz eu virar homem? Ela dizia: - Se você passar por debaixo do arco-íris você vira homem. Quando o arco-íris surgia eu ia correndo na sua direção. Mas o arco-íris estava sempre se distanciando(...)” pág. 55
“(...) já faz dias que eu ando atrás dele. Armei a ratoeira. Mas quem matou ele foi uma gata preta. Ela é do senhor Antônio Sapateiro. O gato é um sábio. Não tem amor profundo e não deixa ninguém escravizá-lo. E quando vai embora não retorna provando que tem opinião. Se faço esta narração do gato é porque fiquei contente dela ter matado o rato que estava estragando os meus livros” p. 148
“...A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encerra. E nós quando estamos no fim da vida é que sabemos como a nossa vida decorreu. A minha até aqui tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde eu moro”. p. 168

No livro de Virgínia Woolf, Um teto todo seu, ela discorre sobre a condição das mulheres de sua época e, como por autorretrato, diz-nos:

...“a mulher precisa ter dinheiro e um teto todo dela se pretende mesmo escrever ficção; e isso, como vocês irão ver, deixa sem solução o grande problema da verdadeira natureza da mulher e da verdadeira natureza da ficção. Esquivei-me ao dever de chegar a uma conclusão sobre essas duas questões — a mulher e a ficção, no que me diz respeito, permanecem como problemas não solucionados. Mas, para compensar um pouco, vou fazer o possível para mostrar-lhes como cheguei a esse conceito do teto e do dinheiro.Vou expor diante de todos, tão livre e integralmente quanto puder, o encadeamento de ideias que me levou a pensar nisso. Talvez, se eu revelar as concepções e preconceitos que estão por trás dessa afirmação, vocês descubram que eles têm alguma relação com as mulheres e outro tanto com a ficção. De qualquer modo, quando um tema é altamente controvertido — e assim é qualquer questão sobre o sexo —, não se pode pretender dizer a verdade. Pode-se apenas mostrar como se chegou a qualquer opinião que de fato se tenha" (...) Além disso, é igualmente inútil perguntar o que teria acontecido se a sra. Seton e sua mãe, e a mãe de sua mãe, tivessem acumulado uma grande riqueza e a tivessem depositado aos cuidados das fundações da faculdade e da biblioteca, porque, em primeiro lugar, lhes era impossível ganhar dinheiro e, em segundo, se tivesse sido possível, a lei lhes negava o direito de possuírem qualquer dinheiro ganho. Só nos últimos quarenta e oito anos é que a sra. Seton pôde ter algum centavo de seu. Em todos os séculos antes disso, o dinheiro teria sido propriedade do marido — um pensamento que talvez tenha contribuído para manter a sra. Seton e sua mãe fora da Bolsa de Valores. Cada centavo que eu ganhe, teriam dito elas, será retirado de mim e empregado de acordo com o critério de meu marido. . . talvez para custear uma bolsa de estudos ou doar fundos para uma fellowship em Balliol ou Kings, de modo que ganhar dinheiro, mesmo que eu pudesse ganhá-lo, não é um assunto de grande interesse para mim. É melhor deixar isso para o meu marido.
(...)
Comecei com Frida, emendei com Beauvoir, Carolina e continuo, para finalizar, com as imagens de três artistas pernambucanas que têm me encantado pela liberadade, criatividade e sororidade (o amor, cuidado, afeto entre mulheres, que pode ser entre amigas, irmãs, namoradas, etc.). Seguem, para deleite, cada uma ao seu estilo. as imagens de Simone Mendes, Dani Pessoa e Beatriz Melo:

Simone Mendes

Beatriz Melo

Beatriz Melo

Dani Pessoa

Dani Pessoa

Yoga para crianças, Yoga nas escolas


Yoga para crianças é um tema que vem me encantando cada vez mais. Penso que atividades físicas na infância são tão essenciais quanto amigos, brincadeiras, espaços para correr, árvores para subir e cuidados da família. Atividades coletivas, acho eu, são ainda mais apropriadas, principalmente nos dias de hoje em que o individualismo é a ordem do dia. Em que pese que temos sido levados por essa onda individualista nos conhecemos muito pouco. Somos bombardeados/as por milhões de informações e, mal chegamos a processar umas poucas, já chega outra avalanche. Com ela (a avalanche), uma pressão enorme pelo acerto. Como já disse alguém (que não lembro quem), nós não temos tido o tempo do erro. Tudo tem que ser perfeito, sem erros e rápido - discurso rápido, pensamento rápido, "afetos rápidos"(??) e, enfim, a vida vai passando numa loucura desenfreada. Adultos/as sofrem com esta pressão e as crianças também. Estas têm padecido mais que nunca sob rótulos de transtornos (TDAH, TCD, TDI, etc. etc.) e uso desenfreado de medicamentos Nos EUA, pelo menos 9% das crianças em idade escolar foram diagnosticadas com TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade), e estão sendo tratadas com medicamentos. Na França, a percentagem de crianças diagnosticadas e medicadas para o TDAH é inferior a 0,5%. Na reportagem que pode ser encontrada aqui há o seguinte questionamento: "Como é que a epidemia de TDAH, que tornou-se firmemente estabelecida nos Estados Unidos, foi quase completamente desconsiderada com relação a crianças na França?" E explica: "... Nos Estados Unidos, os psiquiatras pediátricos consideram o TDAH como um distúrbio biológico, com causas biológicas. O tratamento de escolha também é biológico – medicamentos estimulantes psíquicos, tais como Ritalina e Adderall. Os psiquiatras infantis franceses, por outro lado, vêem o TDAH como uma condição médica que tem causas psico-sociais e situacionais". Ou seja, é necessário compreender o que está acontecendo com as crianças, seus problemas de concentração, posturas antissociais e, por vezes, violentas com colegas, professores/as, pais. Como as crianças têm passado grande parte, senão a maior parte, do dia nas escolas e, como Yoga é tudo-junto-e-misturado, ásanas (movimentos) individuais ou em duplas, respiração, autoconhecimento, concentração e também, diversão (sim, yoga pode ser muito divertido, a postura do leão que o diga - mais informações sobre isso aqui), penso que seria uma excelente atividade recomendada para crianças dentro e fora das escolas.

 



 A postura do leão rugindo (Simhasana) é engraçado na infância e desconcertante para adultos, isso tudo porque nos desacostumamos a exercitar os músculos da nossa face e, principalmente, a parecermos ridículos, e é muito bom não se levar muito a sério. Finalmente acho que tô aprendendo isso. 

Bem, voltando ao Yoga nas escolas, eu penso que é louvável tê-lo entre suas atividades ordinárias. Exemplo maravilhoso está sendo o do Centro de Apoio O Visconde, no Real Parque, SP. De acordo com a matéria que pode ser encontrada aqui, ela "implantou exercícios de yoga para os alunos antes das aulas de matemática, o que melhorou seus rendimentos na hora de aprender. As 134 crianças passam por 20 minutos de exercícios físicos e de respiração antes e depois que entram na sala de aula". Gente, isso é muito bom e acho que é um bom começo. Quem sabe um projeto de lei não sai "por aí" ( e isso depende da pressão da sociedade civil, ou seja, nós, com o apoio de parlamentares comprometidos e sensíveis) dando valor e popularizando esse conhecimento. Afinal, ainda é um conhecimento muito restrito e, talvez por isso mesmo, o investimento financeiro para conhecê-lo tem sido pouco acessível às classes menos abastadas economicamente. Esse é um tema que vou explorar em outro post.


 http://www.hypeness.com.br/2014/12/escola-adota-yoga-e-meditacao-e-melhora-as-notas-dos-estudantes/#

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Prevenção de doenças e cuidado



Ano passado devido a alguns problemas de saúde, eu fui orientada a fazer exercícios físicos todos os dias da minha vida, religiosamente, e assim tem sido. No início foi um pouco difícil, afinal estava extremamente ociosa há mais de cinco anos (tempo inteiro da minha tese e não recomendo isso para ninguém), mas depois foi se tornando, de fato, um hábito. Inicialmente recorri ao pilates, pois não estava conseguindo fazer movimentos básicos do yoga como o Adho Mukha Savasana (ou postura do “cachorro olhando para baixo”na imagem), o ombro não deixava. Yoga é maravilhoso para tudo, mas se você tem problemas, sejam eles nas articulações ou respiratórios, é bom conhecê-los bem, pois, do contrário, problemas poderão ser acentuados,e isso geralmente acontece porque seu/sua instrutor/a não pode lhe dar atenção exclusiva e você ainda não sabe as variações menos vigorosas ou aquelas mais apropriadas ao seu corpo.
O pilates é perfeito para fortalecer áreas específicas do corpo quando já existem problemas e é excelente para quem é indisciplinado com exercícios físicos ou simplesmente gosta de ter um/a profissional atento/a orientando cada movimento (geralmente são poucas as pessoas atendidas por sessão). No caso, no espaço onde realizo são, no máximo, quatro pessoas. Eu me encaixei inicialmente nos dois perfis: indisciplinada e necessitada de orientações diretas quanto ao meu corpo. Tive a grande sorte de cruzar com Carolina França (Fisioterapeuta e Osteopata) de grande coração e profissionalismo e depois de alguns meses estava preparada para retornar aos ásanas do yoga. Desde então tenho atrelado ambas as práticas e tem sido perfeito – uma vez por dia e, algumas vezes, mais de uma vez, dependendo da necessidade e do tempo. Eu escrevi tudo isso porque eu queria chegar no ponto da necessidade da prevenção que Robertinha puxou nos comentários anteriores. Eu tenho percebido, diante de tudo que tenho vivido, que todos/as nós, estamos diante de uma encruzilhada. Precisamos rever todas as nossas escolhas, independentemente se estamos acometidos por alguma doença ou não, ou independentemente de doenças sazonais, ou que vêm com a nossa família, geração após geração, como tem sido o meu caso.  Precisamos mudar, de acordo com minhas contas pessoais (mero achismo), pelo menos quatro hábitos: alimentares, respiratórios, posturais e emocionais. Quem acha que isso tem a ver apenas com o próprio umbigo se engana.  No post que intitulei “se o campo não planta, a cidade não janta” quis puxar a discussão para algo muito mais amplo porque não adianta trocar o remédio do laboratório pela “boa alimentação” se esse alimento está envenenado com agrotóxicos ou é modificado geneticamente (muitas vezes produzidos pela mesma indústria química produtora de medicamentos), assim como também não adianta mudar para uma alimentação livre de agrotóxicos se ela foi produzida por agricultores/as que se submetem a amplos processos de exploração porque não têm terra para trabalhar dignamente, e não adianta ter uma alimentação produzida a partir da agricultura familiar se esta ainda funciona a partir da ideia de que a mulher que faz os trabalhos domésticos e vai para a roça apenas “ajuda” seu  marido que continua sendo o chefe da casa, da produção e da renda produzida por ambos. Ou seja, não adianta fazer yoga, pilates, melhorar postura, respirar melhor, se você vive num mundo que te aflige e não faz nada para mudá-lo. Por outro lado, e agora falo como alguém que tem assumido para si uma parcela de responsabilidade sobre mudanças no mundo, não adianta falar de grandes transformações se você não sabe (ou desaprendeu) respirar ou não conhece, ao menos, seu dedo mindinho (se você acha que conhece tente movimentá-lo agora, rsrsr, maldade!). A questão seria saber respirar e ter ar puro para fazê-lo – não adianta um sem o outro. Concordo em gênero, número, grau, raça e etnia com o que Rô falou. Vivemos numa cultura que não cuida de gente a partir de uma perspectiva integral e preventiva, afinal, tempo para se cuidar é tempo retirado de um sistema mobilizado por lucro. Não é à toa que quem cuida, em geral, são as mulheres. Cuidamos das crianças, dos idosos, outros vulneráveis e de nós mesmas (além certamente dos homens que não são ensinados a se cuidar ou cuidar de outrem). O tempo de trabalho das mulheres é desvalorizado em relação aos homens e, por isso, é explorado, seja no trabalho produtivo, seja no reprodutivo. Enfim, o que o tempo e a vida têm me ensinado, às vezes de modo suave e às vezes nem tanto, é que tudo está relacionado e estar saudável é muito mais que um corpo que não apresenta doenças e se prevenir é mais do que fazer exercícios e se alimentar bem. São conceitos deveras amplos e acho que teremos muito para conversar, mas apenas adiantando algo para outro post, se nós, desde crianças, fôssemos estimulados às práticas respiratórias e de autoconhecimento que são proporcionadas pelo yoga e outras práticas de meditação, bem como a pensar a origem de tudo que usamos, ou comemos, teríamos um mundo menos doente.