A maior parte do texto que ora exponho foi escrito em meados
de 2012 e 2013, quando estava exausta escrevendo uma tese. Eu publiquei no
facebook com o seguinte título: Mainardi, a dotoressa F, e o pensamento obtuso.
Por algum motivo, eu o perdi. Encontrei impresso há dois dias entre meus papéis,
e ao reler achei que seria um ótimo caso para analisarmos juntos o que é esse
nosso momento político, tanto do ponto de vista individual, quanto coletivo, tanto
do ponto de vista material, quanto ao nível sutil.
Jnãna, ou sabedoria ou conhecimento, de acordo com a “Enciclopédia
de Yoga da Pensamento, de Georg Feuerstein, é uma “palavra usada no contexto
secular e no sagrado. Pode-se designar erudição ou *conhecimento conceitual e
também *sabedoria intuitiva superior, ou gnose. Ocasionalmente, jnãna é
equiparada à própria realidade suprema” (pág. 118). Quando o Gãyatri mantrah é
entoado é em função do discernimento que estão a nossa voz, os nossos
pensamentos, enfim, a nossa ação – “Om. Contemplemos o esplendor do divino Sol
vivificante, presente na terra, na atmosfera e no céu. Que ele ilumine nossa
visão. Rig Veda, III:62,10.
A iluminação tem a ver certamente com aquilo que na
filosofia ocidental se nomeou Iluminismo (afinal, a ciência tal qual a
conhecemos, nos ajuda a não sucumbirmos ao senso comum), mas principalmente tem
a ver com aquilo que está identificado com o nosso terceiro olho, no ponto que
fica entre nossos olhos e que enxerga sem que sejam necessárias, córneas, íris,
pupilas, retinas, ou qualquer coisa do tipo. Esta iluminação ao qual se refere
o Gãyatri mantra, tem a ver com saber discriminar o que é superficial do que
realmente importa, o que acaba em seu ciclo e o que perdura pelo infinito através
de nossas escolhas.
A escolha de Mainardi é o exemplo do caminho de uma pessoa
com grande incapacidade de discernimento, apesar de ser um intelectual e com
relativa erudição, ou seja, sabedoria não tem a ver com grau de escolaridade ou
mesmo classe social. A empregada doméstica que hoje jogou o saquinho plástico
na calçada enquanto chegávamos no mesmo prédio tem a mesma incapacidade de
discernimento que o motorista da BMW que abriu o vidro do seu carro para saltar
fora a lata de refrigerante. Trata-se da mesma incapacidade de discernimento de
um professor de Yoga que sucumbe ao ego e, sem responsabilidade, profere
palestras em cursos de formação, opinando sobre Bullyng, cotas raciais, aborto,
e tantos outros temas complexos, vomitando puro senso comum travestido de
sabedoria adquirida ao longo de quatro anos na Índia. A fonte é a mesma. Uma
incapacidade dolorosa de perceber os efeitos do pensamento e das ações (mesmo
em palavras) tanto para si mesmo/a, quanto para o mundo, e é necessário falar
sobre isso.
Vamos ao caso de Mainardi...
“16:00h, quinta-feira, reunião da universidade para
discussão da minha pesquisa. Cansada do meu próprio objeto, cansada de um ciclo
infindável, pego um livro qualquer que, em princípio não tenha nada a ver com mulher, gravidez, parto ou qualquer coisa
do tipo, e o levo comigo a fim de desopilar um pouco a mente. Estava
parcialmente enganada. Li três quartos do livro “A queda” no ônibus, pois tive
a sorte de ir e vir sentada. Certamente desopilei a mente, mas sim, tinha a ver
com mulher, gravidez, parto e qualquer coisa do tipo. Escrita fácil e
envolvente, Diogo Mainardi, conhecido por ser um polêmico reacionário, mergulha
com dignidade em seu próprio drama pessoal na medida em que se assume “escritor
de sua própria letra”, principalmente de suas letras tortas, abestalhadas,
caintes, caídas...exemplo: “O que eu disse a Anna, contemplando a Scuola Grande
di San Marco, alguns instantes antes de entrar no hospital de Veneza
realizou-se plenamente: “Com essa fachada aceito até um filho disforme”. “Eu
aceitei a paralisia cerebral de Tito”. Ele aceitou, mas ele não aceitou sem
crítica. Aceitou, mas sem prescindir da circularidade de seus pensamentos.
Aceitou, mas também errando nas correlações, e é aí onde entra a minha própria circularidade.
A obtusão ou “abestalhamento” (para utilizar um termo recorrente em sua obra)
provocou o que sempre me provocam assertivas obnubiladas: angústia, incredulidade
e, certamente, raiva, afinal concordo com a máxima de que a ignorância de
aproxima, e muito, da maldade, da má fé.
Eis o que me comoveu:
“No hospital de Pádua, em 1739, George Macaulay formou-se
como médico obstetra. Algum tempo depois, estabeleceu-se em Londres e, em 1756,
no hospital de Brownlow Street, foi o pioneiro de um procedimento cirúrgico conhecido
como amniotomia [...], o procedimento obstétrico introduzido por George
Macaulay consistia em romper artificialmente o saco amniótico no útero das
gestantes, para tentar acelerar o trabalho de parto. [...] Em 30 de setembro de
2000 [...] uma obstetra – dotoressa F – resolveu acelerar o nascimento de Tito
por meio de uma amniotomia. Sem se preocupar minimamente com os aspectos éticos
do procedimento, ela foi logo rompendo o saco aminiótico no útero de Anna com
um instrumento conhecido como amniotomo. [...] A maniotomia realizada pela
dotoressa F foi descrita pelos peritos como “totalmente imprópria, inoportuna e
perigosa”. [...] Em 1486, na Alemanha, o inquisidor Heinrich Kramer , da ordem
dos dominicianos, publicou o seu Malleus Maleficarum. O capítulo XIII tratava
especificamente das parteiras-feiticeiras que cometiam o mais medonho de todos
os crimes quando assassinavam bebês recém nascidos”. Heinrich Kramer, no
Malleus Maleficarum recomendou que as parteiras feiticeiras fossem presas e
torturadas pela autoridade religiosa. Nos últimos 500 anos, a prática da tortura caiu em desuso. Apesar de todos os
erros cometidos durante o nascimento de Tito, quando uma
parteira-feiticeira tentou assassiná-lo,
só tive o direito de pedir ao hospital
de Veneza um ressarcimento em dinheiro”.
Sofri com Mainardi quando ele descreveu todos os erros
médicos de dotoressa F. Sofri com ele
pela incapacidade de fazer o tempo voltar, sofri pelo sofrimento da mãe
de Tito (que é invisibilizado do relato de Mainardi), chorei (no ônibus mesmo)
quando ele disse que chorou, mas eu também sofri ao ver a confusão que Mainardi
faz ao invocar, mesmo que indiretamente,
o destino prescrito no Malleus Maleficarum ou “Martelo das bruxas” às
parteiras feiticeiras. Mais que isso revirei minhas vísceras ao ver a confusão de
Mainardi ao realizar a esdrúxula articulação entre a “natureza” da médica
dotoressa F, e a “natureza” de uma parteira-feiticeira, e é aqui que termina
meu encantamento com a humanidade do livro, e com as memórias de um pai
dedicado, e me debato com a humanidade em demasia que o livro invoca ao evocar
também as cem mil mulheres queimadas
vivas entre o fim do século XIV e século XVIII como expõe Rose Marie Muraro na
introdução do Malleus Malleficarum de 2011, da editora Rosa dos Ventos, que
tenho em mãos.
A dotoressa F jamais poderia ter sido comparada a uma
parteira-feiticeira pela simples razão de que mulheres tidas por feiticeiras,
ou seja, as mulheres cultivadoras de ervas, parteiras, dotadas de conhecimentos
populares de cuidado com a saúde, passaram a ser consideradas grande ameaça ao
poder médico que ascendia no interior do sistema feudal. Além disso, como tão
bem expõe Muraro, “quando cessou a caça às bruxas, no século XVIII, [...] o saber
popular cai na clandestinidade, quando não é assimilado como próprio pelo poder
masculino já solidificado”. Dotoressa F aplicou um conhecimento médico, mas foi
responsabilizada junto com o hospital – instituição centralizadora do
conhecimento técnico-científico (vejam bem, não das parteiras). Por que, então,
um erro tão crasso em tal analogia? Minha suspeita é que Mainardi projetou as
fogueiras da idade média em si mesmo ao se queimar nas chamas de sua ignorância
assumindo abestalhadamente o erro do parto no corpo de sua esposa (corpo este
invisibilizado em toda narrativa) e no corpo do seu filho, como é possível
perceber no fragmento a seguir: “O hospital de Veneza era conhecido por seus
erros médicos. Em vez de recorrer a um hospital mais seguro [...] limitei-me a
achincalhar a possibilidade de ter um filho deforme. Eu só conseguia associar a
arte perfeita de Pietro Lombardo a um parto igualmente perfeito. Porque o bem,
representado pela arquitetura de Pietro Lombardo, jamais poderia gerar o mal,
representado por um erro de parto”.
Depois de “exorcizar minhas bruxas” (trocadilho muito
medonho) por meio desse textinho, retorno à minha circularidade, ou não”.
Pois então, depois de
três ou quatro anos retomo esse texto como pano de fundo para falar sobre (in) capacidade
de discernimento ou o que é sabedoria
Mainardi preferiu uma arquitetura, a um filho saudável.
Mainardi associou a médica obstetra antiética a uma feiticeira-parteira.
Mainardi é a antítese da capacidade de discernimento. É a ignorância personificada
e, como tal, faz-se vítima de si mesmo e vitimiza - sua esposa e seu filho
foram vítimas da sua incapacidade de discernir.
O texto sobre essa (in) capacidade de discernir e o momento
político atual continua...